terça-feira, 25 de setembro de 2012

ECOLOGIA HUMANA: UM ENFOQUE DAS RELACÕES HOMEM-AMBIENTE

RESUMO

Neste texto são apresentadas as principais linhas contemporâneas de pesquisa em ecologia humana. A interação de populações humanas com o ambiente é analisada sob o ponto de vista da ecologia e de disciplinas afins, como a antropologia. Inicialmente são expostos alguns aspectos da ecologia de sistemas e evolutiva, que junto com outras disciplinas formam a base da ecologia cultural, etnobiologia e sociobiologia. Sobre a ecologia cultural, são descritos os trabalhos de precursores, com relação aos conceitos e métodos de ecologia cultural e evolução multilinear (J. Steward) e à associação entre energia gasta e complexidade cultural (L. White). São também citados os trabalhos dos neofuncionalistas, como M. Harris e R. Rappaport, e de neoevolucionistas, em particular referentes à pesquisas realizadas sobre a Amazônia. Finalmente, a linha de antropologia processual, considerada como parte da ecologia cultural, é brevemente descrita. A área de etnobiologia inclui a análise dos sistemas de classificação popular, ou seja, de como as diferentes culturas percebem, conhecem e classificam a natureza. Sobre a sociobiologia, alguns trabalhos de W. Hamilton, E. O. Wilson e P. Trivers, dentre outros, são expostos, incluindo os conceitos de aptidão inclusiva e de altruismo recíproco. Modelos oriundos da ecologia, usados para analisar o comportamento humano, também são analisados. Estes são os modelos de subsistência, usados para entender procura e obtenção de alimento e os modelos de transmissão cultural, que incluem em particular a coevolução en tu gens e cultura. Os modelos de subsistência incluem os modelos de decisões, o goal model, e a teoria de jogos, dentre outros. Entretanto, atenção especial é de dicada ao modelo de forrageamento ótimo. Os modelos de transmissão cultural podem incluir o coeficiente de similaridade cultural e as forças de evolução cultural de R. Boyd e P. Richerson. Finalmente, aspectos de ecologia aplicada, com ênfase em crescimento populacional e disponibilidade de recursos, são discutidos. Vale mencionar a complementaridade das linhas de pensamiento e pesquisa apresentadas, já que incluem perguntas e metodologias próprias. Cabe a cada linha contribuir muito para o entendimiento de uma pequena faceta da relação homem-ambiente. / PALAVRA CHAVE / Ecologia Humana / Etnobiologia / Sociobiologia /

Apesar da ecologia humana se basear em conceitos oriundos da ecologia, ou seja, de uma das sub-áreas da biologia, a ecologia humana, não é necessariamente vista como uma das ramificações da ecologia. Para muitos, estudar a "relação do homem com o ambiente" inclui tantos outros fatores (como econômicos, sociais, psicológicos) que a ecologia humana transcende a ecologia. Para outros, a ecologia humana tem objetivos e metodologias mais específicos e que incluem entender o comportamento humano sob variáveis ambientais. Para estes, generalizar acerca da ecologia humana implica em perda de precisão.
Além disso, a utilização de conceitos ecológicos por outras áreas, como sociologia e antropologia, por exemplo, tem causado polêmica devido a imprecisões de definição e de utilização. Exemplo são os conceitos de adaptação (Alland & MacCay, 1973), nicho (Hardesty, 1975, 1977) e ambiente (Bruhn, 1974; Boyd & Richerson, 1985). Em relação ao conceito de adaptação, um dos problemas é entender o que isto significa para a espécie humana: sucesso reprodutivo? Adaptação do indivíduo ou do grupo? O conceito de nicho tem sido amplamente utilizado em ciências sociais como sinônimo de habitat (Diegues 1983: 38, 83), quando sua definição é muito mais ampla e envolve uma gama de variáveis ambientais (Pianka, 1983). Quanto ao ambiente é comum incluir "ambiente social" como uma variável ambiental, o que significa ampliar o conceito de ambiente ao aplicá-lo a populações humanas. Fica-se então entre várias "ecologias humanas" oriundas de áreas diferentes e com conceitos muitas vezes indefinidos ou pouco claros, ou com uma ecologia humana "reducionista".
Na realidade, neste século, a ecologia humana percorreu caminhos diferentes, dependendo de sua origem disciplinar. Dentro da área de ecologia, também encontram-se enfoques distintos, decorrentes de linhas da área como também de conjugações diferentes entre áreas (ecologia/antropología, ecologia/demografia).
De acordo com a revisão de Bruhn (1974), áreas como a antropologia, geografia, sociologia e psicologia apresentam desenvolvimentos próprios de ecologia humana. Na área de geografia, chegou-se a considerar que todo este campo deveria ser chamado de "ecologia humana".
Na sociologia, as bases iniciais da ecologia humana foram influenciadas por H. Spencer e E. Durkheim. De acordo com Fischer-Harrierausen (1976), a ecologia humana derivada Morfologia social (Morphologie sociale) de Durkheim e nos anos vinte foi: estabelecida especialmente por R. Park na Universidade de Chicago. Rojo (1991) considera 3 períodos com contribuições diferentes: de 1910 a 1940, quando as bases teóricas para uma "teoria sociológica de sistemas" são aprofundadas, de 1950 a 1960, com estudos demográficos e a partir de 1970, com enfoque interdisciplinar e ênfase em política ambiental.
Em particular, a "Escola de Chicago" causou bastante polêmica no início deste século. Desta época, bastante conhecido é o "modelo de zonas concêntricas" (concentric zone model) de Burgess (1925). Neste modelo, a cidade (no caso Chicago) é distribuída em zonas concêntricas ao redor de um nódulo central que é dominado por atividades comerciais e industriais. Na área residencial, o status social sobe com a distância, ao ponto central. A Escola de Chicago utilizou conceitos como competição e sucessão em seus estudos. Desta linha de pesquisa surge a "ecologia fatorial" (factorial ecology) onde métodos estatísticos, como análise de componentes principais e multivariada, são aplicados ao estudo das distribuições espaciais em cidades (Cater & Jones, 1989). A área de "ecologia urbana" é certamente associada em seu início à Escola de Chicago e à sociologia. Cabe entretanto ressaltar que também na arquitetura surgiram estudos de planejamento urbano baseados em conceitos da ecologia (Malmberg, 1986).
Outra área que merece destaque é a de epidemiologia, também chamada de ecologia humana. Esta linha, com influência marcadamente européia, é representada no "centro Europeu de Ecologia Humana" em Genebra. O periódico Ecologia humana y saludda Organizagáo Panamericana de Saúde (OMS) também representa esta linha.
Há ainda na Europa (França) a escola de Etnologia Social que é considerada uma escola de ecologia humana onde os objetivos centrais são a comparação entre sociedades industriais e não-industriais (Malmberg, 1986).
Nos Estados Unidos, desde a segunda metade deste século, a ecologia humana tem sido bastante associada à ecologia/antropologia, e o periódico "Human Ecology" é certamente um exemplo desta abordagem.
Outras abordagens ainda são a "ecologia social", onde relações econômicas e sociais em conjunto com variáveis ambientais são estudadas, como o trabalho de Watt (1975) sobre uso de energia e terra. Há ainda a "psicologia ambiental", com enfoques na percepção ambiental ou nos efeitos de poluentes sobre o comportamento humano (Evans, 1980); Evans & Jacobs, 1981). Pesquisadores de diversas abordagens são encontrados em Borden (1986) e no Directory of human ecologists organizado por Borden & Jacobs (1989).
A discussão ao redor do que deve ser a ecologia humana ainda persiste. Ou seja, deve esta ser uma disciplina ou estar diluída em várias disciplinas? Fuchs (1976) ao comentar o "Primeiro Encontro Internacional de Ecologia Humana", em Viena, Áustria, acredita que esta pode ser uma nova disciplina com sistemática e metodologia próprias. Esta visão é compartilhada por Malmberg (1986). Richerson (1977) sugere que pode ser desenvolvida uma teoria em ecologia humana a partir de similaridades teóricas entre as ciências biológicas e sociais.
O objetivo deste trabalho não é aprofundar a questão acima, mas sim apresentar o que é ecologia humana "dentro da ecologia". Longe também de ser uma única linha de trabalho, esta pode ser dividida em pelo menos 3 abordagens: a de sistemas, a evolutiva e a aplicada ou demográfica. Atenção especial será dada à ecologia evolutiva, onde serão abordados aspectos de antropologia (ecologia cultural e etnobiologia) e modelos de ecologia animal e evolução cultural (modelos de subsistência e de transmissão cultural). As abordagens citadas não se contrapõem e são conjugadas em algumas áreas, como na ecologia cultural que inclui as ecologias de sistema e evolutiva.
... áreas como a antropologia, geografia, sociologia e psicologia apresentam desenvolvimentos próprios de ecologia humana.
Ecologia de Sistemas
A teoria de sistemas originou-se de áreas como cibernética, engenharia, teoria da organização industrial, epidemiologia e psicologiagestalt. Este método tem sido aplicado com sucesso no estudo do fluxo de energia em organismos e comunidades (Rodin et al. 1978). Para os pesquisadores que trabalham com manejo de recursos, a abordagem sistêmica garante a computação de informações relevantes para a toma de decisões sobre utilização de recursos (Churchman, 1979).
De acordo com Odum (1972), a aplicação de procedimentos de análise de sistemas em ecologia ficou conhecida como "ecologia de sistemas". Esta abordagem focaliza o estudo do ecossistema. De acordo com Huston et al. (1988), a pesquisa de ecossistema trata da interação entre os organismos e o ambiente num nível acima do indivíduo. Por exemplo, os nutrientes e a produtividade de florestas são modelados e medidos em hectares e grupos de espécies são vistos como produtores, consumidores ou decompositores.
Os ciclos de nutrientes e fluxos de energia tornam as diversas partes do planeta interligadas. Assim, uma floresta, um lago, o mar, ou o planeta constituem um ecossistema (Smith, 1975) Este enfoque tem como linha principal de estudo o ciclo de nutrientes, as cadeias alimentares e o fiuxo de energia entre os organismos (ou seja, o estudo do aspecto funcional do ecossistema). Ecólogos de sistemas, como Margalef (1968), definem a ecologia como "a biologia dos ecossistemas". O estudo do fluxo de energia dentro de um sistema é a "ecologia energética". Nesta linha, Phillipson (1977) define o estudo da ecologia como o estudo das inter-relações dentro de ecossistemas.
Quanto ao estudo do homem, Margalef (1977) considera dois enfoques: a) considerando o homem como uma espécie a mais componente dos ecossistemas; b) como dois sub-sistemas (homem/natureza). O primeiro é enfatizado, como mais científico e o segundo como mais prático. Na realidade, o primero enfoque tem sido característico das ciências biológicas e o segundo das sociais.
Na linha de ecologia humana de sistemas destaca-se o estudo clássico de H. Odum (1971). De acordo com este autor, a natureza, em sua estrutura e função, consiste de animais, plantas, microorganismos e sociedades humanas. As partes vivas são interligadas pelo fluxo de substâncias químicas e energia. A parte do sistema que envolve intercâmbios humanos inclui partes referentes à troca de informações (linguagem) e trocas econômicas (monetárias). H. Odum (1971) utiliza conceitos e modelos de ecologia de sistemas/energética para descrever, dentre outros, modelos de subsistência (caça/agricultura), políticos e religiosos. Nestes modelos, símbolos de redes elétricas são utilizados.
Brandt et al. (1980) desenvolveram um modelo que simula o balanço energético anual de indivíduos e famílias de uma hipotética comunidade Quechua pastoril e agrária dos Andes. Variáveis como diferentes culturas, produtividade, fatores abióticos e doenças fazem parte do modelo, como também são apresentados os fluxos de energia de uma família Quechua.
Um estudo recente, no Brasil, de ecologia humana de sistemas é o de Fearnside (1986). Neste estudo, a relação entre população, agricultura, alocação da produção e capacidade de suporte é simulada em Fortran-IV. O "agroecossistema" simulado inclui inputs como qualidade dos solos, dados metereológicos, tipos de colonos (fatores ecológicos e sociais). Estes inputs geram valores referentes à capacidade de suporte do ambiente.
Ainda sob um enfoque ecossistêmico, ou com uma abordagem holista, vale citar os livros de Boughey (1975) e Campbell (1983). Estes autores adicionaram a esta abordagem a origem e evolução do homem.
Ecologia Evolutiva
A ecologia é definida por Pianka (1983) como o estudo das interrelações dos organismos com o ambiente. Este é definido como a soma total dos fatores físicos (abióticos) e biológicos (bióticos). Cada organismos é membro de uma população, espécie ou comunidade. A ecologia evolutiva visa entender a relação dos indivíduos/populações com o ambiente*. O conceito de fitness(adaptabilidade) é um dos pilares da ecologia evolutiva. Fitness é a capacidade de um organismo se perpetuar e é medido pelo sucesso reprodutivo deste organismo. Avaliar o sucesso reprodutivo de um organismo é fundamental para enentender a relação organismo/ambiente porque o sucesso reprodutivo é de erminado pelo status do organismo dentro de sua população, pelas associações interespecíficas deste e pela comunidade em que este se encontra.
______________________________
*sob esse enfoque, as partes de um sistema nao são "caixas pretas".

Nesse sentido, a seleção natural, a genética e a ecologia de populações são o cerne da ecologia evolutiva. De acordo com Pianka (1983), a seleção natural é o único conceito em ecologia que pode ser considerado como uma lei. Para a maioria dos biólogos, a seleção natural opera em indivíduos através de seus fenótipos. Neste sentido, o nível de estudo da ecologia evolutiva não está no "ecossistema como um todo" mas na relação dos indivíduos/populações com o ambiente. Para uma discussão sobre a unidade de seleção, veja Willems, 1966; Wilson, 1975 e Wynne-Edwards, 1986; Dawkins (1979: 21-31). em particular, é bastante didático. Além disto, estudos que envolvem populações de espécies diferentes (uma comunidade) também são parte da ecologia evolutiva.
Em populações humanas, o conceito de nicho ecológico tem sido bastante útil, sendo este em geral estimado através de índices de diversidade (Hardesty, 1975, 1977). Modelos de "predador-presa" também são usados para entender o comportamento de coleta, caça e pesca.
Da interação da ecologia (evolutiva e de sistemas) com a antropologia, surge a ecologia cultural ou antropologia ecológica. Apesar da forte influência evolutiva na ecologia cultural, a ecologia de sistemas também influenciou na disciplina, em particular entre os neo-funcionalistas dos anos 60. A interação da ecologia evolutiva com a etologia ajuda no surgimento da sociobiologia. Os modelos de subsistência usados em populações humanas, bem como os de transmissão cultural (ou evolução cultura), provém da ecologia evolutiva.
Neste texto, não serão discutidos problemas gerados pelo uso equivocado de conceitos evolutivos no início deste século, como o do "darwismo social". Estes problemas, como também a falsa contraposição de cultura versus gens, podem ser considerados como superados pela ciência atual. Pretendo abordar as linhas contemporâneas, ou seja, as que surgiram a partir dos anos 40-50.
... também na arquitetura surgiram estudos de planejamento urbano baseados em conceitos da ecologia.
Ecologia Cultural
A ecologia cultural ou antropologia ecológica nasceu nos Estados Unidos, em meados deste século, com Julian Steward e Leslie White. Tanto Steward como White foram seguidores de Boas (escola do particularismo histórico ou historicismo cultural). Evolucionistas do século passado, como Tylor (1871), Morgan (1871) e Engels (1884) influenciaram os ecólogos culturais. Orlove (1980) definiu três etapas da antropologia ecológica: a primeira, que inclui os trabalhos de Steward e White; a segunda, com o neoevolucionismo e neofuncionalismo e a terceira chamada de antropologia ecológica processual.
White (1943) explica a evolução cultural em termos de gastos de energia propondo "leis de evolução cultural". Para este autor, quanto maior a complexidade cultural, maior a energia/per capita/ano gasta. Para White, tecnologia e sociedade formam a base para a ideologia, e através das invenções tecnológicas há uma maior captura de energia possibilitando o crescimento populacional. Um exemplo desta abordagem é a comparação entre os Incas e os Índios da Amazônia: entre os Incas havia irrigação e maior densidade populacional que na Amazônia, onde o cultivo dava-se através de queimadas.
Steward (1955) propõe conceitos e metodologias para a ecologia cultural. Para ele, a cultura inclui tecnologia, economia e organização social. O conceito de culture core ("cerne cultural") é introduzido por Steward e este é definido como todas as características culturais relacionadas à subsistência e economia. O estudo da ecologia deve então ser o estudo do cerne cultural. Un dos exemplos do emprego deste método encontra-se no estudo sobre os índios Shoshone (1938). A ênfase de Steward está no estudo da quantidade qualidade e distribuição de recursos.
Outra contribuição importante de Steward (1955, 1977) é a de evolução multilinear. Em vez da evolução ser unilinear, como pensavam os evolucionistas do século passado, a cultura evolui através de várias linhas diferentes. Cada linha desta inclui culturas diferentes, mas com certas similaridades que relacionam-se a pressões ambientais semelhantes. Um exemplo é o surgimento das chamadassociedades hidráulicas, ou seja, de estados despóticos ou impérios em ambientes áridos, onde foi praticada a irrigação, como na Mesopotâmia, Egito, Norte da China, Norte do Peru e Mesoamérica. Ou ainda os chamados bandos patrilineais de caçadores que viviam em baixa densidade em ambientes com recursos esparsos, com tecnologia simples e lideranças temporárias. Estes eram, dentre outros, os Bosquímanos (Kalahari), Pigmeus (Congo), Semang (Maldsia), Negritos (Filipinas), Aborigenes (Austrália) e Ona (Terra do Fogo). Fazendo uma analogia com a biologia, estes seriam casos de convergêngia.
Orlove (1980) ressaltou que os neoevolucionistas consideraram Steward e White corretos, enquanto os neofuncionalistas os criticaram. Para Steward e White, a unidade de análise é a mesma, ou seja, a'cultura. Já para os neofuincionalistas, a unidade de estudo éa população. Os neofuncionalistas utilizam muito o conceito de adaptação, que não está estritamente relacionado à sobrevivência e reprodução, como em biologia (veja revisões de Alland, 1975 e Alland & McCay 1973).
Na linha neofuncionalista destacam-se pelo menos duas áreas: uma preocupada em encontrar variáveis ambientais que expliquem determinados comportamentos ou hábitos culturais e que inclui análises de custo/benefício dos mesmos e outra que utiliza energia, ciclo de nutrientes e ecologia de sistemas em suas análises. M. Harris; é um representante da primera e A. Vayda & R. Rappaport da segunda.
Harris (1979) ficou conhecido pela proposta do materialismo cultural. Nesta linha, infra-estrutura inclui os modos de produção, ou tecnologia e práticas de subsistência, e de reprodução, ou as práticas para expandir ou limitar a população. A estrutura inclui a economia doméstica (organização familiar, divisão de trabalho, dentre outros) e a economia política. A superestrutura inclui, por exemplo, os símbolos, mitos e ideologias. De acordo com o materialismo cultural, existem 4 componentes socioculturais: os éticos, que são a infra-estrutura, estrutura e super-estrutura, e a super-estrutura mental ou êmica (categorias, valores, filosofias, crenças). Para um aprofundamento dos conceitos de ético e êmico veja Harris (1976).
Harris (1977, 1985) também ficou muito conhecido por tentar explicar comportamentos bizarros (canibalismos e tabus alimentares, por exemplo). O canibalismo azteca é explicado por ele como uma forma de satisfazer as necessidades de proteína animal de uma população que vivia numa área onde ruminantes eram ausentes. Alimentar patos, perus e cachorros com cereais tornava muito custosa a alimentação, ainda mais quando nem sempre a agricultura era produtiva. Os aztecas sacrificavam os prisioneiros, cujos corpos eram jogados das pirâmides e recolhido em casas (calpulli) onde eram recortados e distribuídos à população. A quantidade de crânios pendurados em estacas de praças aztecas era impressionante, de acordo com as descrições históricos da época. Outro estudo conhecido do autor é sobre o tabu da vaca sagrada na índia. No caso, a conclusão de M. Harris é a de que a vaca é muito importante para ser eliminada (tabu de uso), por garantir o leite e o arado da terra, dentre outros (o consumo da vaca eliminaria seus benefícios).
A análise de custo/benefício usada por M. Harris tem influência evolutiva. Neste tipo de raciocínio está implícito o valor adaptativo de um determinado comportamento, que deve apresentar mais beneficios do que custos para permanecer na população. Entretanto, cabe a crítica de que nem toda característica é sempre "adaptativa" (Gould & Lewontin, 1978) e de que pode existir uma certa inércia cultural (tradições, por exemplo) ou mesmo traços; mal adaptados (Boy & Richerson, 1985). Uma extensão da linha materialista, tão característica dos anos 80, é a aplicação dos modelos de ecologia evolutiva (como forrageamento ótimo, por exemplo) na análise da subsistência das populações humanas.
Um trabalho clássico na linha de ecologia cultural, usando a abordagem sistêmica é estudo de Rappaport (1968) sobre o ritual do povo Maring (Tsembaga, Papua, Nova Guiné). Neste ritual, a guerra e o sacrifício e consumo dos porcos criados pela comunidade são descritos. Quando a quantidade de porcos aumentava próximo à capacidade de suporte, estes eram sacrificados numa grande festa onde eram formadas alianças e distribuída grande quantidade de carne. A regulação do sistema, homeostase e seleção de grupo são utilizados neste tipo de análise (veja Anderson, 1975, para uma revisão). É comum na descrição destes sistemas certa confusão entre causa e conseqüência como também circularidade nos argumentos (Richerson, 1977). Peoples (1982) reanalisou os dados de Rappaport (1968) sob o ponto de vista de seleção individual e não de grupo. Foin & Davis (1984) sugeríram, usando outros modelos, que o "festival de porcos" dos Tsembaga não tem um papel importante na regulação do ecossistema.
Hardesty (1975, 1977) aborda vários conceitos de ecologia aplicados ao estudo de populações humanas e utiliza, em particular, índices de diversidade para comparar a utilização de recursos por populações humanas. O conceito de nicho ecológico é aprofundado por este autor.
De uma maneira geral, o neofuncionalismo ao considerar a população como uma unidade de estudo deixa de analisar diferenças internas da população. Por exemplo, no caso do tabu da vaca sagrada na índia, as diferenças no consumo de carne pelas diversas castas são ignoradas.
Os neoevolucionistas podem ser exemplificados pelo debate sobre a origem da agricultura e do estado e sobre a disponibilidade de recursos na Amazônia (Orlove, 1980). Vale destacar a hipótese de Carneiro (1970) sobre circunscrição geográfica e a origem do estado. As culturas das regiões do Nilo, do Tigre e Eufrates, da Meso-América e do Peru são comparadas com aquelas sem estado da Amazônia.
Em particular sobre a Amazônia, Meggers (1971) inicia o debate sobre a complexidade das culturas da várzea em comparação com as de terra firme. Gross (1975) propõe a hipótese de escassez de proteína animal na Amazônia, criticada por Chagnon & Hames (1980). Este debate é analisado em detalhe por Neves (1989).
A discussão ao redor do que deve ser a ecologia humana ainda persiste.
Uma outra linha de trabalho, ainda em ecologia cultural, e crítica aos materialistas é a representada por Sahlins (1976). Para Sahlins, o principal na análise dos comportamentos é a ideologia e não o ambiente. O debate Sahlins/Harris ficou conhecido e pode ser exemplificado pelo estudo dos tabus alimentares. Sahlins (1976) considera critérios simbólicos para explicar porque certos animais são consumidos pelos americanos e outros não. Há um gradiente do não comestível/semelhante àhumanidade ao comestível/diferente da humanidade que pode ser representado pelos itens cachorro-cavalo-porco-gado. Ou seja, o cachorro é menos çomestível porque é más semelhante; dése nome e carinho ao cachorro. Esta linha é incluída na antropologia simbólica e em particular, no estudo dos tabus alimentares, a influência de Douglas (1966) é forte. Os simbolistas criticam o critério de utilidade e as análies de custo/benefício dos materialistas, considerados por eles como reducionistas; os materialistas consideram as abordagens simbolistas dentro de critério popperiano, como não falséavéis ou científicas.
A antropologia processual pode ser considerada como a ecologia cultural dos anos 80. Como na ecologia evolutiva, a unidade de análise passa a ser o indivíduo e conceitos de adaptação e nicho são utilizados. Aspectos demográficos e econômicos (sistemas de produção e economia política) são incluídos. Os objetivos são entender os processos de mudança e o comportamento dos indivíduos nestes processos.
Mudanças sociais e econômicas e difusão de inonações são assuntos para a antropologia processual. Alguns exemplos são a linha de Boserup (1981), relacionada ao desenvolvimento tecnológico e crescimento populacional, a de Vayda & McCay (1975) com relação a respostas de indivíduos ou grupos a situações de catástrofes ambientais (secas e enchentes, por exemplo) e a de McCay (1978) que inclui estratégias adaptativas. Essas estratégias são exemplificadas na reação de uma população de pescadores (Fogo Island, Newfoundland, Canadá) à sobrepesca: alguns procuram trabalhos (diversificação) e outros buscam formas de obter melhores resultados na pesca (intensifição).
Finalmente, cabe citar o trabalho de Netting (1977), que sistematizou conceitos e debates na área de ecologia cultural, incluindo populações de caçadores-coletores, pescadores, pastores e horticultores.
Etnobiologia
A etnobiologia originase da antropologia cognitiva, em particular da etnociência, que busca entender como o mundo é percebido, conhecido e classificado por diversas culturas humanas. A etnobiologia tem como objetivo analisar a classificação das comunidades humanas sobre a natureza, em particular sobre os organismos. Por isso, disciplinas como botãnica, ecologia e zoologia são fundamentais, caso não se tenha a intenção de ter apenas uma abordagem êmica.
Lévi-Straus (1962) é um dos iniciadores da área de etnobiologia, ao analisar os sistemas de classificação populares e compará-los com os científicos. Berlin (1973) define 3 áreas de estudo em sistemática folk: a da classificação, que estuda os princípios de organização de organismos em classes, e da nomenclatura, onde são estudados os principios lingüísticos para dar nomes às classes da classificação folk e a da identificação, que estuda a relação entre os caracteres dos organismos e a sua classificação. De acordo com o autor, na maioria das taxonomias folk existem 5 categorias: iniciador único (unique begginer), forma de vida (life form), gênero, espécie e variedade.
Uma das perguntas básicas nos estudos de etnobiologia se refere à existência ou não de regras ou princípios universais de clasificação. Berlin (1973) e Boster et al. (1986) sugerem que a semelhança entre as toxonomias científicas e folk reforçam esta hipótese, como também reforçam a idéia da realidade das espécies.
A área de etnobotânica é aquela onde se encontram mais estudos de etnobiologia. Na área de etnozoologia, a etno-ornitologia e etnoietiologia são mais difundidas. A etnofarmacologia estuda os remédios folk, em geral baseados em plantas medicinais (Etkin, 1988), sendo também muito difundida. É provável que a "utilidade" explique a maior existência de estudos nestas áreas. Ou seja, existem mais estudos onde há classificação folk mais detalhada. Por exemplo, plantas medicinais são usadas em todas as culturas humanas, pássaros são úteis como alimento e ornamento para muitas populações e peixes são úteis para alimento e comércio. Entretanto, a hipótese da "utilidade" é ainda o centro de um debate na área. Lévi-Strauss (1962) defende a idéia de que as espécies animais e vegetais são úteis ou interessantes porque são primeiro conhecidas. Além disto, o autor acredita que conhecimentos tão detalhados de tantas culturas não se devem só a sua utilidade prática. Entretanto, Berlin (1973) observa que os taxa a nível de espécie em taxonomias folk raramente incluem mais de 3 membros, exceto aqueles de extremo significado cultural. Cabe lembrar que "utilidade" aqui deve ser vista não só em termos de alimento, medicina ou troca. Muitas vezes uma espécie é importante por ser perigosa. Por exemplo, conhecer bem as serpentes deve ser vantajoso em termos de sobrevivência. Para detalhes sobre esta polêmica, veja Hays (1982).
No Brasil, os trabalhos de Posey (1983a,b) sobre etnobotânica, etnoentomologia e etnoecologia com os índios Kayapó merecem destaque. Trabalhos sobre etnoictiologia também são comuns (Begossi & Garavello, 1990; Silva, 1988) e um dos mais profundos, que inclui comparações entre conhecimento científico e popular de peixes (morfologia, alimentação, habitat, dentre outros), é o de Marques (1991). Um estudo de etnomedicina (classificação popular de doenças) por Maués (1990) também inaugura uma nova área no Brasil.
Os estudos de etnobiologia em geral incluem levantamentos de espécies e "etnoespécies" e têm contribuído para planos de manejo e conservação de ecossistemas. Os trabalhos de Posey et al. (1984) e de Prance et al. (1987) são exemplos. Para aprofundar este assunto, vale a pena consultar um número especial da revista American Ethnologist (1976) dedicado à etnobiologia (folk biology).
Em populações humanas, o conceito de nicho ecológico tem sido bastante útil, sendo este em geral estimado através de índices de diversidade (Hardesty, 1975, 1977).
Modelos de Subsistência
Esta área passou a ser bem definida nos anos 80 e se refere ao entendimento da relação homem-ambiente a partir do conhecimiento das relações humanas com a exploração de recursos. Os "modelos de subsis,ência" são provenientes da arqueologia e da ecologia evolutiva e utilizados para entender o comportamento humano na procura, obtenção e escolha de recursos para consumo. O objetivo de utilizar estes modelos analíticos é que estes permitem fazer previsões sobre comportamentos em situações específicos. Os dados coletados no campo são então comparados às previsões do modelo e é esta comparação que nos permite aprofundar o conhecimento sobre uma determinada população em dado tempo e lugar.
Quase todos os modelos de subsistência usados na área de ecologia têm alguma base ou influência microeconômica. Os conceitos de ótimo e de utilidade, dentre outros de microeconomia, são empregados em ecologia evolutiva (Rapport & Turner, 1977). De acordo com Real & Caraco (1986), nos últimos 20 anos a aplicação de modelos econômicos em biologia se generalizou e hoje existe um crescente consenso de que teorias ecológicas e econômicas são estreitamente relacionadas.
Os modelos de subsistência referem-se, em particular, à procura e obtenção de alimentos por indivíduos de uma população. Bettinger (1980) apresentou uma revisão detalhada destes modelos, amplamente usados no estudo de populações de caçadores-coletores e horticultores. Desta revisão, vale ressaltar: a) "goal model" - usado para analisar a exploraçao de recursos por grupos onde variáveis como densidade e mobilidade do grupo e peso dos recursos são importantes; b) modelos de decisões -o consumidor escolhe entre um gradiente de certezas/incertezas com graus variados de riscos. O objetivo do consumidor é o de maximizar ganhos e minimizar custos para obter um grau máximo de satisfação. Por exemplo, se os riscos são baixos, o objetivo é o MAXIMAX, ou seja, maximizar o máximo de retornos. Se os riscos são altos, o objetivo é o MAXIMIN, ou maximizar o mínimo de retornos; c) teoria de jogos - os consumidores e a natureza são considerados jogadores. O "objetivo" da natureza é minimizar o máximo de retorno ao consumidor (MINIMAX) e o do consumidor é o de maximizar o mínimo de retorno (MAXIMIN). A teoria de jogos foi aprofundada, em especial, por Maynard Smith (1989); d) programação linear - o objetivo do consumidor é a solução mais econômica (menos custosa). Esta pode ser obter o retorno desejado (minimização) ou obter o máximo dentro das circunstâncias (maximização), que são definidas por variáveis (como calorias, proteínas, prestígio, dentre outras) incluídas em uma matriz. São então apresentadas soluções "ótimas" onde cada recurso tem um valor determinado.
O modelo mais utilizado em ecologia humana é o modelo de forrageamento ótimo, que tem sido amplamente usado para entender o comportamento dos animais. Stephen & Krebs (1986) analisaram 72 trabalhos envolvendo o estudo de forrageamento ótimo em animais, entre 1970-80, e só em 9 estudos foram encontradas inconsistências completas com o modelo. Em ecologia humana, os anos 80 foram os mais produtivos em termos de publicações de forrageamento, ótimo em populações humanas (veja Human Ecology).
Os trabalhos clássicos de Emlen (1966) e de Mac Arthur & Pianka (1966) deram início à teoria de forrageamento ótimo. A premissa básica deste modelo é que a aptidão de um animal depende de sua eficiência ao forragear (procurar e obter alimento). O modelo permite fazer previsões sobre escolha de alimento (dieta ótima), de recursos agregados ou locais para forragear (manchas), de tempo de permanência em manchas e de recursos obtidos levando-se em conta o local de residência ("central place foraging"). Para maiores detalhes sobre o modelo, veja Schoener (1977), Pyke (1984) e Stephen & Krebs (1986). Sobre trabalhos de forrageamento ótimo em ecologia humana, veja Winterhalder & Smith (1981) e Setz (1989). Na maioria dos estudos, o recurso é medido em calorias. O modelo de forrageamento ótimo pode ser usado para entender o comportamento de pescadores, podendo inclusve contribuir para propostas de manejo de estoques pesqueiros. Begossi (1991, 1992a,b) estudou o tempo de viagem e tempo de residência em manchas (locais de pesca ou "pesqueiros") por pescadores da Ilha dos Búzios (SP) e da Baía de Sepetiba (RJ).
A aplicação do modelo de forrageamento ótimo em populações humanas é um ponto polêmico entre ecólogos culturais. Por um lado, Sahlins (1977) questiona a aplicação de "modelos capitalistas" em populações animais e sua subsequente aplicação em populações humanas. Sob outro enfoque, Sih & Milton (1985) questionam medir os recursos em calorias (ou só em calorias) no caso de populações humanas. A inclusão de outras variáveis no modelo é não só viável, mas também recomendável no estudo de populações humanas. Por exemplo, pescadores da Ilha dos Búzios escolhem os peixes baseando-se na quantidade de espinhas e no preço, dentre outras variáveis, e não estritamente em calorias (Begossi, 1989).

Sem comentários:

Enviar um comentário